Rui Ferreira - da medicina veterinária ao incrível mundo do empreendedorismo

Irrequieto, persistente e curioso por natureza, Rui Ferreira, soube viver os ‘anos de ouro’ da melhor forma – sempre envolvido e sempre atento às oportunidades. Sem medo de arriscar, licenciou-se em Medicina Veterinária, no ICBAS, numa escolha nada planeada, para fundar o Banco de Sangue Animal. Salvar vidas e um prazer enorme pela investigação são os motores matriz da sua vida profissional, prova clara de ‘quem corre por gosto não cansa’. 

Vamos voltar às origens. Porquê medicina veterinária e porquê o ICBAS? Como foi tomar essa decisão com 18 anos?

Eu não sou o caso típico do ‘quero ser veterinário desde pequenino’. Nunca fui uma criança com ideias fixas e com um plano de vida completamente delineado. Desde cedo percebi que era uma pessoa de ciências e sempre foi esse o caminho que segui… As opções medicina, veterinária, ou enfermagem, estavam em cima da mesa pelas notas que fui tirando. Eu vivia aqui no Porto tenho aqui a minha família e, portanto, foi natural que as minhas primeiras opções se cingissem ao Porto. E na verdade foi assim que acabei por entrar em veterinária, não porque desde cedo tivesse isso como objetivo, mas porque se foi proporcionando. 

A partir do momento em que entrei em veterinária, foi sempre, sem qualquer dúvida, para ficar e dar o meu melhor, sem nunca ter tido qualquer aspiração para mudar de área, ou de curso, ou de instituição.  

Apesar não existirem expectativas, quando entra em veterinária no ICBAS, considera que foi uma boa experiência desde o primeiro momento?

Gostei imenso do curso, comparando com outros cursos, através do contacto com outros estudantes e outras experiências de ensino, sem dúvida alguma que me senti sempre numa posição muito boa e confortável face à minha formação e comparativamente ao que via noutras universidade. Portanto, sempre achei que era um curso bem desenvolvido, enfim, com algumas limitações de espaço e logística, que eu ainda vivi no ICBAS antigo. Mas, apesar de todas essas limitações e constrangimentos, o curso estava muito bem desenhado, muito bem organizado, com um grande nível de exigência, que obviamente nos colocava no topo, entre os melhores.

Entrou no ICBAS em 1999, como viveu a vida académica e tudo o que isso envolvia, desde a participação nos grupos da casa, aos momentos de convívio muito conhecidos das biomédicas?

Sempre fui uma pessoa muito ativa, sempre participei em tudo desde início. O primeiro grande contacto que tive com o que era o espírito do ICBAS, foram as atividades de receção aos caloiros, nas quais participei desde o primeiro dia, que adorei e das quais tenho memórias incríveis. A verdade é que as comissões de praxe no ICBAS organizavam várias atividades durante as primeiras semanas de aulas, vocacionadas, obviamente, para a praxe, mas sempre com espírito integrador e de respeito. Este espírito era transversal aos estudantes e aos professores. No ICBAS sempre houve um grande sentimento de união, de proximidade, num estilo muito informal e relaxado, que se evidenciava também no relacionamento com os professores. Foram estes aspetos que me acompanharam durante todo percurso académico e que se revelaram fundamentais para a minha formação. Também fiz parte da fundação da tuna mista do ICBAS, e durante vários anos andámos pelo país fora a promover o ICBAS e os nossos valores. Sempre fui muito ativo na vida académica e fiz grandes amigos que tenho até hoje. E neste percurso o espírito do ICBAS de companheirismo, tolerância e integração esteve sempre presente.


"O primeiro grande contacto que tive com o que era o espírito do ICBAS, foram as atividades de receção aos caloiros, nas quais participei desde o primeiro dia e que adorei e das quais tenho memórias incríveis. No ICBAS sempre houve um grande sentimento de união, de proximidade, num estilo muito informal e relaxado, que se evidenciava também no relacionamento com os professores."

E as escolhas ao longo do percurso académico, como foram sendo feitas?

O curso não tinha, na altura, cadeiras opcionais que nos permitissem ver caminhos alternativos à veterinária. Isso só acontecia quando escolhíamos o local onde íamos estagiar. Durante o curso foi fazê-lo ‘direitinho’, sem falhar nenhuma disciplina, nenhum ano, apesar de toda a minha envolvência em atividades extracurriculares, fui sempre muito dedicado e consegui terminar o curso sem perder nenhum ano.

No final do curso, em 2004/2005, optei pela área dos animais de companhia, que na época era a área que absorvia mais veterinários. Nesse seguimento fiz o estágio curricular em Barcelona e foi lá que tive os primeiros contactos que me foram muito úteis para o doutoramento, que fiz juntamente com a Universidade Autónoma de Barcelona. Concluí a licenciatura em 2005 e comecei a trabalhar no Hospital Veterinário do Porto, nas urgências, aqui foi o primeiro contacto que tive com emergências e cuidados intensivos.

Foi desse contacto com os cuidados intensivos que percebeu que faltava alguma coisa: um banco de sangue animal…

Exatamente. Fui percebendo, gradualmente, que era necessário organizar o banco de sangue. Na altura não havia ninguém no hospital dedicado a isso. Foi curioso, porque na época o professor Rafael Gopegui, que viria a ser meu orientador de doutoramento, dá uma entrevista a uma revista espanhola da especialidade sobre um banco de sangue que estavam a desenvolver na Universidade Autónoma de Barcelona, aqui no hospital entregaram-me a revista e disseram para eu fazer algo semelhante. E foi aí que tudo começou, a palavra começou a espalhar-se, as clínicas começaram a vir buscar unidade de sangue quando era necessário e isto acabou por ganhar uma dimensão nacional.

Foi crescendo, eu fui passando cada vez mais tempo no banco de sangue e claro comecei a pensar “porque não investir por aqui.” Estava muito envolvido no assunto, comecei a perceber que havia algumas lacunas e muitas incongruências na informação existente e comecei a organizar alguns estudos de investigação…

Por onde e como é que começa a aprofundar os estudos nesta área? 

Sou eu que começo a desenhar vários projetos de investigação, começo a “bater em várias capelinhas”, a falar com vários professores do ICBAS para perceber como poderia dar seguimento a esta investigação, como poderia fazer um doutoramento nesta área. Enfim, estava muito decidido era uma área com muito potencial, portanto, fosse com bolsa ou sem bolsa ia seguir este caminho. Uma das pessoas a quem ‘bati à porta’ foi o Professor Augusto Matos, que era o coordenador da parte clínica dos animais de companhia e a conversa foi incrível, e acabou por ser o início deste longo processo. Eu falei-lhe das várias possibilidades de investigação. Eram três: estudar os dadores de sangue, ou estudar a parte do processamento das unidades recolhidas, ou ainda, uma terceira vertente sobre a eficácia das transfusões de sangue em animais. A resposta dele foi excelente e muito simples “parece-me tudo muito bem, faça um doutoramento onde englobe as 3 áreas.” E assim foi, estava lançado o desafio!  

Acabei o doutoramento, saí do Hospital Veterinário do Porto, e como estava muito focado naquela área pedi ao ICBAS apoio para montar o banco de sague já como empresa, uma espécie de startupE aí surgiu o apoio da escola para montar a estrutura do que viria a ser o 1º Banco de Sangue Animal do país. Estávamos nós em 2011.

A independência do ICBAS acontece quando?

Foi natural, o espaço começou a ficar pequeno para nós, e acabámos por mudar de instalações, para a Boavista. O que nos permitiu dar o salto, aumentar a atividade e o número de colaboradores. A partir daí foi sempre a crescer, hoje somos uma estrutura única no mundo, exclusivamente especializada em bancos de sangue, com 32 pessoas a operar em todo o país, europa e no mundo.


"Sou um privilegiado, consigo desenvolver uma atividade de valor dentro da medicina veterinária, que me permite sustento económico, mas também me dá 
know how e amostragem para investir na investigação, essencial para a nossa credibilidade e para o trabalho que fazemos."

A experiência que teve em Barcelona o que trouxe de benéfico para este trabalho?

Deu-me prática, mas acima de tudo deu-me muitos contactos. Aliás tive o professor Rafael Gopegui como coorientado, que foi muito importante. Portanto esta experiência em Barcelona foi essencial a esse nível.  

O quão importante é este equilíbrio entre as universidades, a investigação e o mundo empresarial?

Para mim sempre foi uma relação natural. O que me suporta financeiramente é a parte empresarial, mas nunca deixei de fazer investigação porque isso suporta o meu trabalho enquanto empresário. Sou um privilegiado, consigo desenvolver uma atividade de valor dentro da medicina veterinária, que me permite sustento económico, mas também me dá know-how e amostragem para investir na investigação, essencial para a nossa credibilidade e para o trabalho que fazemos.

Há para mim um aspeto fundamental nesta relação entre o mundo empresarial e a investigação: a nossa atividade, como mexe com um grande número de animais que são saudáveis, permite-nos integrar vários ramos da investigação sem fazermos nada de diferente aos dadores. Por exemplo, numa unidade de 250 ml posso perfeitamente usar 1 ml para efeitos de investigação, sem que isso tenha qualquer impacto para o dador, mas para o futuro e para outros animais que necessitem de determinados tratamentos é muito valioso.

E o futuro? Que projetos para os próximos anos?

Estamos a trabalhar para conseguir o reconhecimento das unidades de sangue como medicamentos veterinários, o que nos permitiria reforçar a atividade de bancos de sangue em todo o mundo, chegando a mais países, conseguimos ajudar mais animais.

Para além disso há um projeto de investigação de uma aluna de doutoramento do ICBAS na área dos coelhos, que pode abrir uma porta para os bancos de sangue de outras espécies, ditas exóticas. Mas também vários projetos de investigação para criar novos produtos, como plasma liofilizado, que vai permitir preservar melhor as unidades, mas também permitir fazer concentrados de proteínas, abrindo-se assim novos potencias terapêuticos.

E depois, o nosso grande objetivo para o futuro passa por fazer face a todos os pedidos de ajuda que recebemos e nesse sentido abrimos um banco de sangue na Bélgica, em parceria com a Universidade de Liége, que nos permite dar apoio a toda a europa central.

E no meio disto tudo ainda ajudaram clínicas veterinárias na Ucrânia…

 

A ideia surgiu poucas semanas depois de começar o conflito. É nossa missão ajudar todos os animais e dar apoio a quem está a ajudar os animais que estão neste cenário de guerra ou de catástrofe natural. Portanto entrei em contacto com uma associação que está a dar apoio aos refugiados que levam os seus animais, mas também a abrigos de animais, para lhes proporcionar de forma gratuita componentes sanguíneos, como plasma ou eritrócitos. Além disso, enviaram-nos uma lista de material que estavam a precisar e então, juntamente com outras organizações, como a Ordem dos Médicos Veterinários, fomos com uma camioneta alugada para levar o máximo máximo de ração e material veterinário possível. Depois disso trouxemos um total de 45 ucranianos refugiados na viagem de volta a Portugal. Afinal, este é também espírito do banco de sangue.


"A
minha filosofia, e a que transmito aqui à minha equipa, é que todas as decisões são boas, porque são tomadas num determinado momento, com a informação que temos disponível. Eu soube sempre aproveitar as oportunidades que iam surgindo. E isso é um bom 
conselho: estar atento ao que nos rodeia, perceber onde estão as necessidades e o que podemos fazer de melhor.
O primeiro conselho que daria seria para não se adaptarem demasiado ao que têm, para não se acomodarem, por isso bloqueia-nos o pensamento e restringe-nos o futuro. O segundo seria para manterem sempre a mente aberta"
Rui Ferreira, CEO do Banco de Sangue Animal

Qual o conselho que daria ao Rui de 18 anos?

Eu nunca fui uma pessoa de achar que tomei más decisões. A minha filosofia e a que transmito aqui à minha equipa é que todas as decisões são boas, porque são tomadas num determinado momento, com a informação que temos disponível. E não vale a pena pensar muito nisso à posteriori. Acho que os passos que fui dando sempre foram muito calculados, fui aproveitando as coisas que me iam surgindo. E isso acho que isso é um bom conselho: estar atento ao que nos rodeia, perceber onde estão as necessidades e o que podemos fazer de melhor.

E aos estudantes que estão a entrar agora no ICBAS?

O primeiro conselho seria para não se adaptarem demasiado ao que têm, para não se acomodarem, pois isso bloqueia-nos o pensamento e restringe-nos o futuro. O segundo seria para manterem sempre a mente aberta, empenharem-se nas suas tarefas e ideias e serem sempre preocupados em fazer as coisas bem feitas, ou seja, terem sentido de compromisso. O terceiro e último, saibam os vossos direitos, mas não se esqueçam dos vossos deveres. Sejam humildes e não reivindiquem tudo sem darem provas do que são capazes.

 


Entrevista e texto de Bárbara do Carmo Silva
Fotografia DR Banco de Sangue Animal