Cátia Sá: A reconciliação com a medicina veterinária e o gratificante percurso da reabilitação animal
O sonho de menina deu lugar a uma enorme insatisfação com a profissão. Depois de sair, e ter outras experiências profissionais, foi tempo de fazer as pazes com a medicina veterinária, de voltar e dedicar-se ao que mais gostava, a reabilitação animal.
Começamos sempre pelo início, com a pergunta óbvia: porquê veterinária e porquê o ICBAS?
Quis ser veterinária desde sempre, desde que me lembro que nunca quis ser outra coisa. E estudei sempre muito, com o objetivo claro de que tinha que o fazer para conseguir ter uma média alta e poder entrar em veterinária. Portanto para mim não foi um esforço, foi o alcançar de um objetivo.
Na altura informei-me, soube que havia um curso no ICBAS que tinha acabado de iniciar. Aliás eu entrei em 95 e o curso tinha arrancado em 94. Portanto, na época, esta pareceu uma boa solução, já que tenho dois irmãos, todos a estudar na faculdade na altura, um deles a estudar fora. Ou seja, foi ouro sobre azul, encontrar o curso o sempre quis, numa uma faculdade em casa, no Porto.
Como foram esses anos de curso? Estávamos no início do curso, de que forma é que isso marcou o seu percurso?
Estávamos muito no início e lembro-me que, logo no primeiro ano, havia um boato de que a Ordem não ia reconhecer o nosso curso. Aquilo para nós foi muito complicado de gerir, e implicou um grande esforço também dos alunos para contribuir para a afirmação do curso. Na altura, o que nos foi dito pelos professores é que tal coisa não poderia acontecer, depois de um curso estar criado nenhuma Ordem nos ia interditar o acesso à profissão.
Depois havia o Prof. Nuno Grande, uma enorme referência com um pensamento que moldou o curso e que nos moldou de certa forma. Tínhamos um tronco comum com medicina, havia a ideia unificadora de uma só medicina, divergíamos na fisiologia, anatomia, mas por exemplo biologia celular e outras disciplinas eram comuns, o que da minha perspetiva foi muito vantajoso…
Vantajoso a que níveis?
Considero fundamental que nós enquanto seres vivos, e neste caso enquanto médicos veterinários, compreendamos que toda a nossa existência está interligada e mesmo dependente de outras espécies. Quanto melhor compreendermos essa interação, melhor compreenderemos a evolução, as necessidades de cada espécie e as soluções para o futuro.
Acho que hoje o espectro é fechado logo à partida, e deve ser precisamente o contrário: deve ser aberto e ir fechando, para que os alunos possam ir experimentando e escolhendo o que mais lhes interessa. Afinal, não faz mal nenhum a um médico entender a fisiologia de um animal, até porque muita investigação é feita com animais. Acho que esta interação entre cursos foi uma experiência incrível que também nos permitiu criar ligações interpessoais com outros alunos e colegas que trouxemos para vida, algo que não teria acontecido se o curso fosse logo à partida divergente. A visão do Professor Nuno Grande era a visão certa! Para além disso, foi graças ao tronco comum que conheci o meu marido!
Acabou o curso em 2001, o que veio depois disso? Como foi entrar no mercado de trabalho?
A entrada no mercado de trabalho foi imediata, assim que acabei o estágio fiquei na clínica onde tinha estagiado a fazer uma substituição. Depois houve a possibilidade de trabalhar para uma clínica em Ponte de Lima, e fui. Nós não perdíamos uma oportunidade para trabalhar, ou seja, se havia uma oportunidade era para aproveitar. Os meus pais tinham lá casa, mudei-me para lá e estive lá durante 9 meses, mas o meu namorado estava a estagiar em Braga, nós queríamos constituir família, portanto regressar ao Porto era inevitável.
Durante 3 anos os meus ciclos de trabalho eram de 9 meses, ao fim de nove meses havia uma necessidade de mudar. Trabalhei em três sítios diferentes… por mais que houvesse uma equipa por trás, eu trabalhava sozinha, e houve uma fase na minha vida, nesse período, em que desaprendi mais do que aprendi. Comecei a ganhar medos, porque não tinha confiança, nem tinha ninguém que estivesse ao meu lado para me apoiar e ajudar e, nessa fase, comecei a refletir sobre o meu trabalho como veterinária e foi um momento muito importante para mim. Ou seja, percebi que não queria fazer o que estava a fazer, sentia que não estava a dar o meu melhor.
Então passei uma fase em que me zanguei com a medicina veterinária e saí. Nessa altura fui a uma entrevista de trabalho para uma empresa na área da nutrição, não sabia bem para o que ia, mas sabia que era a minha corda de salvação e agarrei-me a ela com todas as forças. E fiquei. Deixei de fazer urgências, deixei de ter que lidar com a morte dos animais, estava a aprender algo novo, mas tinha toda uma estrutura por trás que me ia dar suporte e ensinar.
Era um trabalho fora da caixa, ia ser delegada comercial, logo eu que era uma pessoa muito tímida, para quem era muito difícil bater porta a porta, mas de facto foi a melhor coisa que eu podia ter feito. Trabalhei nesta área 3 anos, e aprendi imensa coisa técnica, nas relações interpessoais desenvolvi competências de comunicação. Foi o meu período de reconciliação com a profissão, ao fim desse período voltei a ter vontade de regressar à clínica.
Atualmente os jovens não se permitem experimentar outras coisas. O facto de se ter “zangado” com a profissão e de repente estar num mundo completamente diferente permitiu que aprendesse imensas coisas que de outra maneira talvez não tivesse aprendido…. Esse período de ‘luto’ digamos assim foi fundamental?
Sim sem dúvida, sem esta experiência certamente que não seria o que sou hoje, e não teria chegado aonde cheguei. Eu estava preparada para ser veterinária não estava era preparada para vida…Portanto esta experiência foi essencial.
Nesse período deixei de ter urgências, comecei a ter mais autonomia, a construir uma rede de contactos enorme, a conhecer muitos colegas. Mas, no entanto, o que eu sempre quis foi ser veterinária, e comecei a perceber que o facto de não passar da sala de espera – o animal entrava, a ação acontecia dentro do consultório e eu não estava lá – percebi que queria regressar à clínica, mas nunca nas condições anteriores. Portanto, a única condição para regressar era fazer aquilo que eu realmente gostava de fazer e não ir nunca mais contra os meus princípios ou a minha visão. E, nessa altura, fiz uma formação intensiva em reabilitação animal…
Portando a ideia de trabalhar em reabilitação já estava presente?
Sim, eu lia na mesma, eu estudava, e o tema da dor fazia todo o sentido para mim.
Como se deu o salto? Como nasce a clínica das Oliveiras?
Eu tinha uma rede de contactos muito grande, e quando saí as pessoas sabiam que ia prestar um serviço diferenciador, portanto acabavam por me recomendar sempre que achavam oportuno.
Eu não fazia ideia se ia ter sucesso ou não, mas nesse momento eu e o meu marido éramos pais de primeira viagem e debatíamo-nos muito sobre a nossa realização pessoal profissional. Aliás tínhamos um pediatra que nos falava muito disso, que o pai e a mãe tinham que estar bem para serem bons pais e de facto aquilo na época bateu forte e mudámos, eu e o meu marido. Despedimo-nos os dois e recomeçamos.
Arranjei uma carrinha e comecei a realizar um serviço de ambulatório. Os meus colegas iam-me recomendando, e as coisas foram surgindo. Havia uma colega nossa que estava a fazer domicílios na área clínica e criámos as duas uma clínica. Nessa época a reabilitação estava num cubículo, as coisas começaram a crescer, para além de eu precisar de espaço, porque sabia que a hidroterapia tinha que fazer parte do projeto, e isso requeria espaço, começámos a ter mais clientes, passámos da clínica para um consultório maior onde estivemos cerca de 5 anos, e depois viemos para o atual espaço, há 5 anos. Hoje temos o dobro da dimensão e o dobro da equipa.
Quantas pessoas trabalham aqui e quantos animais conseguem estar aqui ao mesmo tempo?
Em regime diário temos espaço para 10 animais e as consultas externas (de dor ou acupuntura) veem de acordo com agenda, consultas de uma hora, uma hora e meia). Neste momento somos entre 4 a 5 pessoas em permanência.
Reabilitação animal – quando falamos disto estamos a falar de quê exatamente? De que tipo de tratamentos, para que tipo de doenças?
As nossas espécies alvo são cães e gatos, embora não exclusivamente, mas basicamente cuidamos de todos os animais que se enquadrem em animais de companhia. Dedicamo-nos à medicina da dor, medicina de reabilitação e cuidados paliativos. Aqui olhamos o animal como um todo e atuamos medicamente procurando a melhor solução para aquele animal, sob o ponto de vista médico, integrando os colegas de cirurgia, da medicina da dor, nutrição, comportamento, e aplicando as valências terapêuticas que temos ao nosso alcance, algo que a medicina tradicional, que se esgota na prescrição farmacológica, não consegue oferecer. O nosso objetivo é promover o conforto dos animais, por exemplo, com doenças crónicas, não necessariamente apenas a animais terminais. Procuramos restaurar-lhes a função e assegurar o seu bem-estar físico, mas também emocional e social. Muito do cuidado que fazemos aqui, obviamente, tem conhecimento técnico e médico, mas também tem um grande lado de humanidade. É fundamental neste trabalho empatizar com o animal, saber o que ele precisa emocionalmente – às vezes pode ser um brinquedo, atenção, um passeio na rua – tudo para além de cuidar fisicamente dele.
O que já aconteceu de espetacular?
Parece um cliché, mas os milagres acontecem quase todos os dias. Essas pequenas diferenças nós vemos acontecer todos os dias. Claro que um cão que não anda e depois começa a andar é incrível para o tutor. Mas por exemplo, um animal que não se consegue colocar de pé e de repente começa a conseguir, é incrível para nós, mas imagine para ele que, de repente, começa a ver o mundo de toda uma outra perspetiva e quanto isso melhora o seu bem-estar, o seu conforto. Onde vemos os casos mais espetaculares é nos problemas neurológicos, sobretudo os mais difíceis.
Por onde passa o futuro da reabilitação animal em Portugal?
Aquilo que eu vejo é muitos enfermeiros a investir nesta área, mas muito poucos veterinários. Acho que existe caminho, mas é preciso que as clínicas e hospitais não olhem para esta área como o parente pobre das veterinárias. Esta é uma área que exige tempo. Eu preciso de mais ou menos uma hora e meia com cada paciente, enquanto, numa hora e meia um cirurgião se calhar faz duas ou três cirurgias (esterilizações por exemplo), o que exige pessoas, porque eu preciso de ajuda para tratar alguns animais que são grandes, ou seja a rentabilidade é bastante menor. Mas se pensarmos naquilo que é a mais valia de um serviço diferenciador que traz bem-estar, qualidade de vida ao animal e ao tutor, ou seja, aquele valor que não é financeiro, mas que traz valor à entidade que presta aquele serviço diferenciado, só pode haver crescimento nesta área. O caminho passa por especializar e profissionalizar esta área, só assim conseguiremos avançar.
Para terminar, um conselho para esta nova geração de veterinários que está a terminar a faculdade?
Têm que estar empenhados e dar sempre o seu melhor. Às vezes acabam de chegar e até têm competências técnicas, mas falta-lhes as competências individuas, que são fundamentais, tais como a capacidade de comunicação, a empatia… Por isso devem tentar trabalhar o melhor possível e desenvolver estas competências. Para isso podem experimentar trabalhar noutra área qualquer, por exemplo, às vezes recebemos estagiários, e aqueles que já contactaram com mercado de trabalho estão muito melhor preparados para lidar com as situações reais, de confronto, de dúvida. Portanto, experimentem coisas novas, áreas diferentes, não tenham medo e mantenham-se firmes que vai sempre melhorar.
Entrevista e texto de Bárbara do Carmo Silva
Fotografia de Sérgio Vilela