Diogo Simão Lemos e a coragem de fazer diferente
O encontro estava marcado para meados de dezembro de 2021, no ICBAS, depois de algumas semanas sem ser possível o contacto. O Diogo estava, novamente, a fazer diferente, e por isso incontactável. Esta história é a história de um percurso peculiar e nada convencional, marcado pelo sucesso académico, mas também por vontades muito próprias que, muitas vezes por teimosia, o levaram por caminhos únicos de descoberta de si próprio e do que o rodeia. Uma história que prova que o caminho não é linear e deve ser feito à nossa medida!
Vamos começar pelo início. O Diogo concluiu medicina em 2017. Porquê medicina, era um sonho de menino? E porquê o ICBAS?
Não entrei em medicina com aquela paixão do ‘sempre foi o que eu quis fazer’. Eu tirava boas notas no secundário, havia alguma pressão social e familiar nessa direção e, portanto, o caminho óbvio, pelo menos aqui em Portugal, seria seguir medicina.
Na altura era muito novo, não sabia muito bem o que queria seguir. Sabia sim que queria sair de Braga, a minha cidade natal – gosto dela, mas gostaria de explorar outras cidades maiores. No final das contas, acabou por ser uma espécie de acordo com o meu pai: eu seguia medicina, mas vinha para o Porto. Como na altura não tinha outras opções convictas – uma vez que não fazia ideia do que queria, o que gostava e não gostava – aceitei o desafio. Escolhi o ICBAS porque tinha a média mais alta, tinha cá um amigo e sabia que tinha esta vertente das biomédicas – também juntava outro tipo de coisas e isso agradava-me. O facto de ter várias opções agradava-me, então lá tomei a minha decisão e vim para cá. O meu tempo no ICBAS foi espetacular.
E depois como foi? Chegou ao ICBAS e ao Porto, imagino que super à vontade com o facto de ter mudado de cidade. Como foi delineando o seu caminho?
O meu tempo no ICBAS foi uma grande experiência. Foi o sair de casa, começar a viver com estudantes, num sítio novo. Adorei o processo de chegar aqui. Entrei logo em vários grupos, como a tuna, e a partir daí fiquei sempre dedicado à causa do ICBAS. Nos primeiros três anos não fui assim tão dedicado às aulas, preocupava-me mais com a parte social. Foi de facto um momento extraordinário, de descoberta de mim próprio e dos outros.
Principalmente até o quarto ano, a tuna foi realmente uma das coisas mais importantes, à qual me dediquei muito. Fui eleito magister (presidente) e isso foi uma experiência enorme porque, para além da música, contactei também com a gestão de uma equipa, eramos quase 100 pessoas no total, entre membros ativos e inativos. Havia atividades para organizar, desde o festival às digressões, e também políticas internas e externas para gerir. Gostei muito mais disto do que propriamente da parte clínica de medicina. Era algo que eu já estava um bocadinho espera que acontecesse, mas que acabou por se verificar de uma forma natural, não foi intencional.
Porque escolheu ingressar na tuna? A música era importante? Já fazia parte da sua vida?
Toco guitarra clássica desde pequeno. Por isso sempre fui muito ligado à música e sempre gostei muito de música, fui inclusive tendo bandas quando era novo, aquelas típicas bandas de garagem punk. Mas se a parte da música era importante, o meu interesse foi principalmente o de poder de fazer parte de um grupo, conhecer pessoas. Foi importantíssimo para mim a parte de me entrosar. A tuna era uma família, permitiu-me conhecer novas pessoas. Portanto a música foi importante, mas a possibilidade de conhecer pessoas e ter novas vivências teve também muito peso.
Apesar deste envolvimento nas atividades extracurriculares fez sempre o seu percurso sem grandes sobressaltos. Quando é que surgiu pela primeira vez a hipótese de ir para fora?
Foi no quarto ano, no verão, com um estágio na Turquia. Foi a primeira vez que tive fora do país assim por um tempo prolongado (1 mês) e foi a primeira vez que contactei com uma cultura totalmente diferente – fiquei realmente fascinado. De tal forma que nos anos seguintes quis fazer ERASMUS: no quinto ano fui para o Brasil, um semestre, e no sexto fui para a Hungria, outro semestre. A partir daí, de certa forma, há esta mudança na minha vida e começo a passar mais tempo fora de Portugal do que cá.
O que é que ganhou com estas experiências fora, quer em termos académicos, quer ao nível pessoal?
Na Turquia fiz um estágio em cirurgia, em Ancara, a capital, num hospital muito grande. Assistíamos a cirurgias de topo, o que foi muito interessante do ponto de vista médico, de aprendizagem. Mas foi também a primeira vez que contactei, por exemplo, com a cultura muçulmana, para além de ter podido contactar com muita gente de todos os cantos do mundo. Fomos criando amizades e aprendo a lidar uns com os outros num ambiente multicultural. Foi nessa altura que percebi que essa diversidade é muito interessante.
O que é que se ganha nesse contacto com os outros?
A exposição a maneiras diferentes de olhar o mundo. Isso continua a ser o grande motivo pelo qual quero continuar a viajar e ir a sítios diferentes. Estar no mesmo local é confortável, mas deixa-nos numa espécie de bolha uma vez que somos continuamente expostos às mesmas coisas, aos mesmos estímulos e às mesmas formas de ver o mundo. Quando vamos para fora somos expostos a pessoas, culturas e lugares diferentes, de repente coisas que achamos banais para outras pessoas são extraordinárias, e vice-versa. Essa exposição faz-nos pensar muito e é para mim profundamente interessante.
"A exposição a maneiras diferentes de olhar o mundo. Isso continua a ser o grande motivo pelo qual quero continuar a viajar e ir a sítios diferentes. Estar no mesmo local é confortável, mas deixa-nos numa espécie de bolha uma vez que somos continuamente expostos às mesmas coisas, aos mesmos estímulos e às mesmas formas de ver o mundo."
Depois desta experiência veio o ERASMUS: Brasil e Hungria…
Queria ter uma experiência dentro e fora da Europa. No 5º ano fui para o Brasil, para Fortaleza. Foi a minha primeira vez num país da América do Sul. Uma cultura completamente diferente, pessoas muito mais abertas. Fiz também algumas viagens: no final do período clínico fui para Amazónia – estive lá 1 mês a viver com duas tribos indígenas – e isso marcou-me muito, demonstrou-me que é possível ser humano e ter visões da vida completamente diferentes.
Como é que se tem sucesso académico num curso tão exigente como medicina, mas também se consegue, ao mesmo tempo, acompanhar essa vontade de descobrir o mundo, de conhecer pessoas diferentes. Como é que isto coabita?
O grande motor penso que é a curiosidade, a busca pelo desafio, por coisas novas, mas também a procura por fazer bem tudo aquilo a nos propomos – sempre tive isso muito presente. Querer fazer algo diferente do que seria o convencional exige capacidade de adaptação. Cria situações em que não estamos assim tão bem, cria-nos dúvida. Mas um dos meus motes tem sido de que é precisamente esse desconforto que nos traz aprendizagens e torna melhores. A minha maneira de coabitar as duas coisas é tentar ser bom no que faço profissionalmente, o melhor possível e, ao mesmo tempo, essa vida profissional ser uma vida que me traz, por si, uma constante descoberta e maior abrangência de conhecimentos.
Em 2017 terminou o curso e que hipóteses tinha em cima da mesa? Quais eram as suas vontades e perspetivas?
Depois de acabar o curso, faz-se o Harrison (atualmente PNA), entra-se numa especialidade e fica-se 5/6 anos a fazer essa especialidade, onde se trabalha muito. Ao fim desse tempo passa-se finalmente a ter uma vida confortável. Este é o trajeto linear que eu soube desde logo que não queria para mim. Quando acabei o curso sabia que não queria ser médico clínico. Gostei muito de fazer o curso, mas gostei mais de todas as experiências que tive associadas a ele. Assim, decidi não fazer o Harrison. Tinha várias opções: queria viajar, trabalhar na área humanitária, fazer outro mestrado.
Quando o ano acabou, comecei a enviar emails para a Índia e o Nepal, à procura organizações que me recebessem para os ajudar e aprender. Mandei emails para 50 ou mais organizações, das quais 2 ou 3 responderam. Escolhi uma delas onde estive cerca de 2 meses e meio. Era uma família que tinha uma ONG muito pequena, com um orfanato com cerca de 50 crianças e eu lá fazia um pouco de tudo, como ajudar com as crianças ou fazer uma campanha para recolher fundos e construir casas de banho para famílias desprivilegiadas, por exemplo. Fui exposto a uma realidade muito diferente que despertou em mim a vontade de fazer mais.
Depois dessa experiência estive mais 4 meses a viajar pela Índia e a perceber como as coisas funcionavam num país tão diferente.
Quando voltei a Portugal, candidatei-me a vários mestrados. Estava ligado à saúde e não podia fugir disso, mas queria arranjar uma maneira de juntar o meu interesse por culturas diferentes, por projetos, por viajar e pela sociedade em geral e foi aí que encontrei o mestrado em saúde global em Maastricht, na Holanda. Fui aceite e foi um ano muito intenso onde apreendi imenso e acabei a fazer a tese final no Canadá, na Universidade de Ottawa. A tese foi sobre governação global de doenças infeciosas – sobre epidemias e pandemias, isto mesmo antes do início do Covid-19. Foi esta tese que me abriu as portas para trabalhar na Organização Mundial de Saúde (OMS).
Como é que chegou à OMS?
Quando regressei a Portugal, depois de concluir a tese, candidatei-me a vários postos de trabalho, em várias organizações, e acabei aceite num estágio na OMS em Copenhaga. Era um estágio que relacionava desenvolvimento sustentável e saúde. Foi a minha primeira verdadeira experiência de trabalho. Comecei em janeiro de 2020. Depois veio a pandemia, tivemos todos de ir para casa, o trabalho mudou e começamos a trabalhar no covid – em conjunto com uma equipa internacional, escrevi um artigo académico sobre como olhar para o covid-19 como uma oportunidade para desenvolver melhores sistemas para as nossas sociedades. Como aproveitar esta disrupção para melhorar as coisas.
Estive 6 meses no estágio, depois 4 meses a estudar (fiz um curso sobre economia e política), e a seguir ofereceram-me um contrato como consultor na equipa de resposta de emergência ao covid, onde estive durante quase um ano.
Que impacto teve ter trabalhado numa organização como a OMS?
Aprendi imenso, só estando lá é que conseguimos perceber os detalhes de como funcionam as teias e as relações entre as várias organizações de topo, onde se recomendam ou se tomam decisões. A minha maneira de olhar para o trabalho também mudou. Eu antes era muito obsessivo nos objetivos e queria sempre fazer o melhor possível, obstinadamente. Ainda sou um pouco assim, mas o meu tempo na OMS foi muito pesado pessoalmente, dediquei-me tanto que acabei por explodir. Tive situações de estar completamente exausto, em burnout, e isso mudou-me algumas perspetivas.
Aprendi muito sobre como as coisas funcionam no mundo real. Mas também aprendi muito a nível pessoal. A OMS é um local muito difícil de entrar, em termos teóricos é a organização mais importante ao nível do que se faz na saúde globalmente. Lá dentro os objetivos são muito difíceis, parcialmente irrealizáveis. A organização é tão grande que muito do trabalho é simplesmente para manter a organização a funcionar. E não era o meu interesse fazer parte desse sistema. Eu senti que se ficasse ali, ficaria fechado numa bolha que olha para o mundo de uma maneira específica e exclusiva. Portanto havia a questão: ou ficava “para sempre” na OMS e fazia lá a minha carreira, que seria certamente muito confortável. Ou então desafiava-me de novo a aprender mais coisas, a explorar novas oportunidades e formas de estar na vida. A minha decisão foi sair e ir procurar coisas novas. Estar na OMS foi muito bom, mas achei que tinha que ir explorar outras coisas.
"Ou ficava “para sempre” na OMS e fazia lá a minha carreira, que seria certamente muito confortável. Ou então desafiava-me de novo a aprender mais coisas, a explorar novas oportunidades e formas de estar na vida. A minha decisão foi sair e ir procurar coisas novas. Estar na OMS foi muito bom, mas achei que tinha que ir explorar outras coisas."
Essa visão é importante… esperamos que esta conversa chegue a muitos estudantes. É importante perceber-se que às vezes o nosso objetivo cumprido pode não corresponder as expectativas e não faz mal, é normal. O que é que gostava que lhe tivessem dito?
O que eu gostava que me tivessem dito é que era possível, que não é mau e é normal querermos arriscar. Há muito medo dum desconhecido em que o mundo não é seguro e é demasiado difícil. Mas não creio que seja verdade. Obviamente que a minha experiência é de alguém privilegiado, por ser português, europeu, branco, homem, etc., mas a minha experiência vem-me dizendo que é possível arriscar, procurar novas abordagens e desafios, e ter sucesso.
O emprego que consegui na OMS era um emprego de sonho e, de certa maneira, o que eu queria fazer, mas não consegui aceitar que fosse o fim da linha. Para mim foi: ok, mais um passo, consegui, mas não preciso de dizer ‘olha cheguei’, não queria dizer isso aos 26 anos. Foi de novo um pouco similar ao que senti aqui quando acabei o curso, seria óbvio fazer o Harrison e ser médico, porque é o que a sociedade nos diz. Nesse ano o que senti à minha volta foi a mesma coisa: ora se estou na OMS não posso sair, porque ninguém sai da OMS. Eu acho isso errado, as pessoas deixam-se levar por essa ideia de estabilidade e ficam num conforto quase vegetal, entorpecido. Obviamente que estar sempre a sair e a mudar é também puxado e tem muitos reveses, mas ao mesmo tempo traz um crescimento ótimo e é também uma forma de olharmos para nós próprios: eu sou muitas coisas diferentes, posso construir coisas em vários sentidos, sou capaz disso.
Depois saiu, ficou a respirar…
Sim, aí veio outra fase. Em agosto trabalhei durante um mês na Grécia, onde já tinha estado a fazer voluntariado num campo de refugiados. E depois comecei a viajar. Uma das coisas que queria experimentar era passar tempo a escrever de forma criativa. Então decidi ter um mês dedicado em exclusivo a escrever. Para isso não podia estar com pessoas, tinha de estar isolado. Então em setembro fiz um retiro de meditação (foi aí que me tentaram contactar e estava inacessível) e em outubro retirei-me do mundo social, comecei a viajar pela Grécia, sozinho, apenas a escrever. Depois disso aos poucos voltei à realidade…
E está a perspetivar o futuro…
Sim, para já é uma incógnita, há várias opções em cima da mesa, uma das opções é ir para o Parlamento Europeu, outra é optar novamente por uma via mais humanitária. Mas o futuro será definido em janeiro*.
Que conselhos daria aos estudantes que estão agora a chegar? E àqueles que estão a sair como médicos?
Não ter medo de arriscar. Não ter medo de sair do que é visto como normal e seguro. E não ter medo do desconforto. Para quem entra no ICBAS, não ter medo de ir à tuna, ou de estar na associação, ou de fazer Erasmus. Usar essas oportunidades como lugares onde se vão descobrir e construir a si próprios. Não ter medo de explorar o que é diferente porque são essas coisas que nos vão ensinar aquilo que somos e que queremos ser. Para quem sai do curso a mesma coisa, não é porque toda a gente faz o Harrison que nós, por medo ou imposição, temos que fazer exatamente o mesmo. Não ter receio de ter curiosidade e de ir atrás dessa curiosidade. Não ter medo de arriscar, de explorar, não ter medo do estrangeiro, não ter medo do desconhecido.
(*Nota de Editor: Esta entrevista foi realizada em dezembro de 2021. No início de 2022, Diogo Simão Lemos começou a trabalhar com a ONG Action Aid, no Quénia, em projetos de resiliência climática e na resposta de emergência à seca do Corno de África. Em outubro de 2022 inicia um novo projeto, em Genebra, como analista humanitário para uma organização humanitária global independente chamada ACAPS.)
Entrevista e texto de Bárbara do Carmo Silva
Fotografia Sérgio Vilela