José Barros: um percurso cheio de casualidades e de encontros felizes

José Barros é diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto) desde 2016, um trabalho de gestão médica, do qual destaca a cooperação entre a área clínica e o campo científico, que “constitui uma grande oportunidade para os estudantes”. José Barros é também professor catedrático convidado do ICBAS, onde nunca se esquece de recordar os seus antecessores, “afinal são eles os responsáveis por estarmos aqui hoje, numa posição de grande privilégio.”

Com uma carreira cheia de sucessos, conhecemos o médico que aprendeu a ler aos 8 anos (“acontecia no Estado Novo”) e que aos 19 entrevistou Manoel de Oliveira, para quem “o fascínio da Medicina está na capacidade de contribuir para a melhoria da vida de todos nós”. Neurologista, com 37 anos de prática clínica, e um caminho onde a erudição, a cultura e a arte foram sempre formas naturais de ver o mundo. Um percurso longo onde não faltam aventuras embebidas em grande sabedoria, que não cabem numa só entrevista.

O professor José Barros é estudante do quinto curso de medicina do ICBAS (1980-1986). É natural de Penafiel. Como é que, à época, vir para o Porto, para medicina e para o ICBAS se torna uma opção?

No início do liceu queria ir para Direito. A seguir ao 25 de abril, a política estava crepitante, interessava-me e o Direito ligava-se-lhe bem… No fim do curso geral dos liceus, tínhamos de escolher o curso complementar – entre ciências ou letras. Nessa altura, em Portugal, também se discutia a importância de uma agricultura moderna e não de subsistência, havia a reforma agrária em curso… e eu comecei a entusiasmar-me pela Agronomia, então acabei por escolher ciências! Só mais tarde é que surgiu o interesse pela biologia animal…

E quando foi esse momento?

Lembro-me bem, foi numa aula de Filosofia, que incluía a Psicologia, também uma marca do tempo. Hoje não entendemos como se encaixavam estas áreas do conhecimento, mas na altura estavam integradas. Discutiu-se o reflexo condicionado e a experiência do “cão de Pavlov” e eu achei aquilo muito interessante, tanto que me recordo que este foi o primeiro momento em que me interessei pela biologia animal. Na altura de escolher a faculdade colocava-se a questão da Agronomia, que na época só havia em Lisboa. Sou o mais velho de 4 irmãos, que eram todos crianças, portanto ir para Lisboa fazia alguma diferença. Foi aí que comecei a pensar ‘porque não medicina?’. Eu tinha nota para entrar, que na altura era cerca de 15, parece pouco, mas poucos tinham. Antigamente os alunos com 16 valores tinham direito a quadro de honra, debruado a ramos de oliveira e folhas de palmeira, logo abolido após o 25 de abril. Aliás naquele ano do Liceu de Penafiel, que incluía estudantes de todo o interior do distrito do Porto, só entrámos dois em Medicina, eu no ICBAS e uma colega na FMUP. No ICBAS, entravam muitas pessoas que não tinham conseguido ir para as faculdades de medicina clássicas, principalmente nas de Lisboa. O Estado dava um valor extra aos estudantes que não tinham entrado no ano letivo anterior, o que desequilibrava tudo…

Como veio para o ICBAS?

O ICBAS é uma escola de que me orgulho imenso e há décadas, mas vim para o cá a achar que era uma coisa e afinal era outra. Quem primeiro me falou do ICBAS foi um professor de literatura francófona da Faculdade de Letras, o António Ferreira de Brito, um homem eloquente, que era da minha terra, amigo do Prof. Nuno Grande e conhecido do Dr. Corino de Andrade, por isso sabia que estavam a criar uma coisa muito interessante. Descreveu-me um conceito extraordinário, lembro-me bem dessa conversa, mas que não era exatamente rigorosa – segundo ele, o instituto   era para formar   cientistas e técnicos que viessem a desenvolver as ciências biomédicas e as áreas da gestão e planeamento em saúde. E eu achei aquilo uma ideia muito interessante e lá decidi incluir a “Medicina do ICBAS numa lista de 9 opções variadas (todas as permitidas no impresso de candidatura às universidades). No entanto, quando fui fazer a matrícula e comecei a ler as disciplinas do ciclo clínico, percebi que o curso era Medicina exatamente como a imaginava: Dermatologia, Ortopedia, Ginecologia, Neurologia… Tanto que pensei, ‘isto é um curso de medicina como os outros’. Portanto foi uma certa surpresa, na verdade, nunca pensei vir a ser médico ou tive sequer essa vocação desde pequeno… Portanto aconteceu! Lá está a primeira de muitas casualidades… Na verdade, o curso de Medicina do ICBAS é diferente. Constatei isso cedo; agora tento ajudar a manter essa distinção.    

Aliás, há uma história caricata que retrata bem esta coisa da vocação. No dia em que fiz o exame de Biologia/Geologia do ano propedêutico, tínhamos de vir fazê-lo a um liceu do Porto, e a mim calhou-me o Liceu Rainha Santa Isabel. Fiz a prova e depois comecei a andar pela cidade, sem destino, e vi o anúncio, no Cinema Trindade, de ‘Kramer contra Kramer’. Fui ver o filme. E há um momento em que a criança, o “filho” de Meryl Streep e Dustin Hoffman, cai e tem de ser suturado na face e eu fiquei impressionadíssimo com o sangue na tela, e com os momentos da sutura, ponto a ponto, e que me fez fechar os olhos, porque me estava a incomodar tremendamente. Mal eu sabia que, uns meses mais tarde, estaria a entrar em Medicina e que mais tarde viria a fazer suturas e tarefas ainda mais cruentas. Isto é um exemplo que estas coisas das vocações são relativas…

 

Grupo de estudantes do ICBAS, 1983. Da esquerda para a direita: António Torres, Luísa Lobato, Paulo Cunha e Silva, Lúcia Costa, José Barros e Eduarda Cordeiro.

A vocação é relativa… aprende-se? Como é o ICBAS contribui para a formação da vocação?

Mais do que procurar trabalhar naquilo que gostamos, devemos gostar daquilo que temos de fazer. Há uma frase de Agustina Bessa-Luís que acho que se adapta bem ao meu percurso: “O que me interessa, não é o que eu gosto”. E tem sido assim. Se há coisas importantes, interessantes ou urgentes para fazer, que não são um gosto pré-existente, mas se vejo que tenho oportunidade de as fazer com vantagem para a comunidade, é melhor ser eu a fazer do que deixá-las ao acaso… Ou seja, ao longo da minha carreira não tenho feito grandes planos, as coisas têm aparecido, ou são me propostas e faço-as sempre o melhor que sei. O gosto e o interesse têm dimensões fascinantes, mas com muitos desencontros entre si.

Como era o ICBAS em 1980? Ainda encontramos marcas desse tempo nos dias de hoje?

Com certeza que sim, mas era um ICBAS muito diferente. Primeiro era uma instituição muito mais pequena – só havia 5 professores catedráticos, havia o curso de Medicina e Ciências do Meio Aquático.  Nomes mediáticos como o Prof. Alexandre Quintanilha ou a Prof. Maria de Sousa, ainda não estavam no ICBAS. O Dr. Corino de Andrade tinha uma grande aura na época, não dava aulas, mas andava sempre por lá e passava no corredor com um ar poderoso, que era muito inspiracional. Também o Prof. Nuno Grande que estava diariamente connosco, que nos incentivava, que nos motivava, e que dava sempre um ar de otimismo, de que era possível fazer coisas e avançar. Para além destes dois grandes nomes, houve outros professores que tiveram grande impacto naqueles anos como o Prof. Fernando Oliveira Torres, o primeiro a falar-nos de uma nova doença, a SIDA, e o Prof.  Pedro Moradas Ferreira que era uma pessoa que falava connosco sobre arte, cultura, política, espetáculos e até bioquímica…

O ICBAS era um espaço de liberdade? E o Porto, como era o Porto dessa altura e de que forma promovia a agitação entre os mais jovens?

O Porto era uma cidade escura, não havia turistas nem grande animação cultural, não havia Serralves, nem Casa da Música, mas tínhamos uma grande vantagem – vinha muita gente do sul que não entrava nas faculdades de Lisboa, entrava no ICBAS, o que fazia com que na cidade existissem muitos estudantes  que moravam sozinhos, que não tinham cá compromissos familiares, e que tinham total liberdade. Algumas pessoas que vieram de Lisboa foram muito importantes, porque tinham tempo livre, disponibilidade e mentalidades plurais. Então fazíamos muito vida de café, de tertúlias … no Carlos Alberto, no Cineclube, no Aniki-Bobó, no Duque… explorávamos ao máximo esse lado. Havia muita vida fora da faculdade! Fazíamos alguma “vida cultural”, digamos assim, mas que na minha opinião foi muito importante.

"O Prof. Nuno Grande que estava diariamente connosco, que nos incentivava, que nos motivava, e que dava sempre um ar de otimismo, de que era possível fazer coisas e avançar."

 

 

 

 

 

 

 

Homenagem ao Prof. Nuno Grande, após discurso como Presidente da Mesa da RGA (Reunião Geral de Alunos). Ateneu Comercial do Porto, 06/11/1984. Da esquerda para a direita: Prof. Eurico de Figueiredo (diretor do ICBAS), JB, Prof. Nuno Grande, Dr.ª Ana Maria Grande, Dr.ª Berta Fernandes e Dr. Mário Cal Brandão (Governador Civil do Porto).

Havia uma proximidade com os colegas… o facto de estarmos no pós-25 de abril, como é que isso agitava ainda mais as águas e as tertúlias e alimentava esse lado dessa vida fora da faculdade?

As pessoas estavam muito mais disponíveis para política e não só… aproveitávamos tudo o que vinha ao Porto, gerindo as nossas economias, tentávamos ir a tudo. Frequentávamos muito o Piolho, naquela época discutíamos muito o Jornal de Letras e o SE7E, e o Piolho era um sítio de reflexão, frequentado por estudantes, mas também por políticos, intelectuais, artistas plásticos e atores. Era um sítio onde se discutia muita coisa.

Depois havia também um lado de intenso associativismo. Nesse âmbito, eu e o Paulo Cunha Silva, que foi meu colega de curso, criámos uma revista cultural, a ‘Sinapse’, que nunca chegou a sair. Como nós não nos revíamos na associação de estudantes da época que era muito partidária, quando chegou o momento de imprimir a revista não tivemos apoio. Quando finalmente os derrotamos em eleições, as prioridades já eram outras. Essa edição, tinha uma entrevista a Manoel de Oliveira, que foi publicada mais tarde, 30 anos depois, no Jornal i, em 2015 aquando da morte do realizador. O que obviamente nos deixou muito contentes. Infelizmente, o Paulo morreu logo a seguir.

A proximidade era com colegas, mas também com professores. Havia uma relação fraternal entre alunos e professores, ou é só uma fantasia dos mais saudosistas?

Com alguns sim. Não sei como era noutras faculdades, mas o Prof. Abel Salazar foi afastado da universidade por falar com os alunos e os convidar a dar aulas, sem qualquer distanciamento ou superioridade. Isso era considerado uma subversão. Aqui havia alguma proximidade, com alguns professores, mas não era generalizada. A proximidade que existe hoje é maior. Com o Prof. Nuno Grande havia muita proximidade, ele próprio abordava os alunos e estava sempre disponível para estudantes e funcionários. Havia outros que tinham uma grande proximidade connosco, mas também havia outros docentes, nomeadamente os que não eram do ICBAS, que vinham cá dar umas aulas…

De facto, aquela nave central do ICBAS antigo era um ponto de encontro para muita gente, além disso estava aberto 24 horas por dia, havia sempre muito movimento, as pessoas cruzavam-se, conversavam e assim se foi criando uma certa mística do que era a vivência no e do ICBAS. As pessoas eram muito disponíveis e abertas a tudo.

Havia um incentivo dentro da escola para que os estudantes procurassem e contactassem com outras coisas para além do curso?

Havia. Essa mensagem era transmitida a partir do pensamento do Prof. Abel Salazar, da vivência do Dr. Corino de Andrade, e do Prof. Ruy Luís Gomes, que foi reitor no momento da fundação.

Eu digo aos estudantes que estão no melhor ICBAS de sempre. É o melhor que já existiu. Vale a pena
enaltecer o passado, mas o presente é melhor. Um presente, de raízes nesse passado e visões plurais do futuro. Não há contradição nisto, mas coerência. Por exemplo a relação com o hospital, entre a investigação e a parte clínica, não era nada do que é hoje, era praticamente inexistente. O ICBAS e o Hospital viveram muito tempo de costas quase voltadas e isso era mau. Claro que havia, no hospital, figuras incontornáveis, pessoas do ponto de vista clínico, político e da sociedade, muito relevantes. Nomes tais como Albino Aroso, Eva Xavier, Mário Caetano Pereira, Joaquim Pereira Guedes, Manuel Silva Araújo, Hernâni Vilaça, Queiroz Marinho, Joaquim Torres, Serafim Guimarães, Benvindo Justiça, Soares de Sousa, Celso Fontes, Amaral Bernardo, Nélson Rocha e quase todos das neurociências clínicas… eram médicos de grande relevância, pioneiros em várias áreas, pelo que o ciclo clínico, a cooperação entre ICBAS e hospital, foi muito importante. Os estudantes poderem contactar com todas estas pessoas, com um percurso notável, algumas com personalidades caprichosas, era extraordinário

"De facto, aquela nave central do ICBAS antigo era um ponto de encontro para muita gente, além disso estava aberto 24 horas por dia, havia sempre muito movimento, as pessoas cruzavam-se, conversavam e assim se foi criando uma certa mística do que era a vivência no e do ICBAS. As pessoas eram muito disponíveis e abertas a tudo. Eu digo muitas vezes aos estudantes que estão no melhor ICBAS de sempre."

Já que falamos em ciclo clínico, como é que surge a neurologia? É nesse momento em que contacta com grandes nomes da medicina que percebe que é por esta especialidade que quer seguir?

Eu fiz o ciclo clínico quase todo a pensar em psiquiatria, mas comecei a apreciar a escola de neurologia, onde havia figuras muito carismáticas, de grande prestígio profissional e intelectual: Rocha Melo, Serafim Paranhos, Castro Lopes, Paulo Mendo, Almeida Pinto, Paula Coutinho, Manuel Canijo, Luís de Carvalho, Serafim Paranhos, Leão Ramos, Bastos Lima, Luis Monteiro, Pereira Monteiro, Lopes Lima, Martins da Silva e António Guimarães. A minha namorada era monitora de Citogenética, de Jorge Sequeiros, com grande ligação à paramiloidose e à Neurologia, principalmente a Corino de Andrade e a Paula Coutinho, sendo outra fonte de informação desse mundo. Se ela tivesse escolhido a Neurologia, como parecia estar destinado, talvez eu tivesse ido para Psiquiatria.

Termina o curso em 1986 e depois…

Em 1987/88 fiz o internato geral (o agora denominado ano comum). Entrei para Neurologia e em fevereiro de 1989 fui 15 meses para o serviço militar obrigatório. Isto numa época em que muitos médicos evocavam a condição de objetores de consciência e não iam. Decidi que devia ir à tropa, apesar de partilhar alguns preconceitos em relação aos militares.

E que peso é que isso teve na sua vida, na sua formação? Se é que teve algum?

Foram os 15 meses mais descansados da minha vida e onde fui mais bem tratado. Desde os 7 anos (quando entrei na escola primária) até hoje foi o único período em que me deitava sem ter de pensar em nada de específico. Ou seja, no dia a seguir acordava sem nenhuma obrigação, tirando algumas trivialidades, aquelas rotinas mínimas… e num sítio onde me tratavam excecionalmente bem e que modificou o meu modo de olhar os militares.    Conheci pessoas muito interessantes, oficiais de artilharia que eram poetas, ou se interessavam por pintura ou pelos heterónimos de Fernando Pessoa. Além de uma grande preocupação com o bem-estar físico e psicológico dos soldados. Isso foi para mim uma descoberta.

Parece-me bastante óbvio que a arte e cultura fazem parte da sua vida. Em que medida isso é importante para si enquanto médico e gestor? E, por outro lado, qual a importância de ter acesso à arte (nas suas mais variadas expressões) e à cultura na formação dos médicos?

O interesse que eu tenho pelas artes, pela literatura é o de um cidadão médio europeu. Nem mais, nem menos. Interesso-me, mas não sou um militante de causas nessas áreas, nem tenho qualidades artísticas ou literárias. Dizem que escrevo bem, mas eu sei que não. Acho que a cultura tem um valor de coesão social, um valor económico importante, faz as sociedades avançar, progredir, faz-nos ser mais tolerantes e tudo isso é muito relevante. E o que temos assistido nos últimos anos, felizmente, é que há cada vez mais pessoas a subir um patamar nas suas aquisições e pretensões culturais. Eu acho que, em grande medida, a cultura continua a ser para elites, mas há mais gente a caminhar em direção a essas elites, a atrever-se a dar mais um passo. O tempo do Paulo Cunha e Silva como vereador foi importantíssimo nessa afirmação no que ao Porto diz respeito. Tenho amigos muito indignados com o sucesso dos livros de supermercado, mas parece-me que é melhor que haja gente a lê-los do que não ler nada. Um dia, quem sabe, mudarão de órbita.

Já tive alunos que me escreveram dedicatórias a agradecer a incorporação cultural nas aulas ou coisas assim… eu fico muito admirado porque acho que não lhes dou nada de extraordinário. Nas aulas eu procuro mais a história das coisas do que propriamente a ligação direta da medicina com a pintura, ou literatura. Procuro mostrar aos estudantes que as coisas tiveram um início e uma progressão. Para mim é importante que as pessoas saibam que tudo teve pioneiros … em semiologia, eu não começo a ensinar o exame neurológico sem antes dizer o que é a neurologia portuguesa, o que foi a neurologia no Porto, quem são as pessoas e que não se podem esquecer de alguns nomes. É injusto que se esqueçam os que foram essenciais para a progressão e desenvolvimento desta disciplina num tempo adverso e sem condições. É para mim importante passar essa mensagem, para que as pessoas entendam onde estão, que este hospital tem 200 anos de ensino médico e isso é muito relevante. Os estudantes têm de entender e conhecer o meio onde estão, que é único e não é replicável noutros hospitais.

"Para mim é importante que as pessoas saibam que tudo teve pioneiros … em semiologia, eu não começo a ensinar o exame neurológico sem antes dizer o que é a neurologia portuguesa, o que foi a neurologia no Porto, quem são as pessoas e que não se podem esquecer de alguns nomes. É injusto que se esqueçam os que foram essenciais para a progressão e desenvolvimento desta disciplina num tempo adverso e sem condições."

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estudantes do ICBAS
em 1983: António Vieira Rebelo, Lúcia Costa, Paulo Cunha e Silva, José Barros.

Termina a tropa, acabam os 15 meses e volta ao mundo real, o das preocupações. Como foi o caminho depois disso?

As duas áreas às quais acabei por me dedicar foram muito condicionadas pelas pessoas com quem me cruzei: durante o internato com o Prof. Pereira Monteiro, que se dedicava ao estudo da enxaqueca. Depois da minha passagem por Paris, comecei a interessar-me pela genética, nomeadamente pelas doenças autossómicas dominantes. Estagiei com a Prof. Marie-Germaine Bousser, que estava nessa época a descrever uma doença genética nova, a CADASIL, e que tinha famílias com enxaqueca hemiplégica com ataxia cerebelosa. Estas doenças têm alguns pontos comuns. Quando voltei a Portugal, em 1995, comecei a fazer consulta de paramiloidose, outra doença autossómica dominante, que tinha sido criada pela Prof. Paula Coutinho. Depois de entrar para o quadro, como já especialista, comecei a trabalhar com a Prof. Paula Coutinho, que estava a montar a maior aventura da Neurologia em Portugal – que passou por um rastreio de ataxias em todo o país. Uma ‘aventura’ que durou 12 anos, que juntou uma equipa transdisciplinar, desde a neurologia à genética, passando pela saúde pública e pela epidemiologia. Nós íamos, distrito a distrito, a casa das pessoas, em estreita cooperação com os médicos de família, que nos enviavam os casos suspeitos. Conhecemos o Portugal profundo, muito à custa deste trabalho. Conhecemos as casas das pessoas e era muito curioso porque tínhamos pessoas muito pobres que viviam sem quaisquer condições, depois pessoas que faziam milagres em casas muito modestas e ainda pessoas que tinham desperdiçado muito dinheiro em casas disfuncionais, que não serviam para nada.

Era uma dinâmica muito intensa, porque durante o dia fazíamos recolhas, à noite discutíamos os casos e entregávamos as colheitas à transportadora TNT que as mandava para o Canadá, onde estavam estudantes de doutoramento do Prof. Jorge Sequeiros, Cláudia Gaspar, Patrícia Maciel e Isabel Silveira, que analisavam as amostras… Isto foi o início da Neurogenética em Portugal.  

No rastreio, encontramos as primeiras famílias com enxaqueca hemiplégica com ataxia cerebelosa, idênticas a algumas que tinha conhecido em Paris. Uma delas, da Póvoa de Varzim, é a maior do mundo. Estas coisa são como a cerejas: umas puxam outras. Diversos colegas começaram a pedir-me para observar doentes suspeitos ou famílias prováveis. O IBMC (agora no I3S) fez os estudos genéticos. A minha tese de doutoramento assentou neste trabalho.  

Essa proximidade com o doente que falou, em que se conhece o ambiente em que o doente vive, os seus hábitos são essenciais para um bom diagnóstico? Isto de saber o que se passa na vida das pessoas é possível nos dias de hoje com a pressão, com a rapidez com que tudo acontece?

Tem de ser. Se não entendermos quem são as pessoas não conseguimos ajudá-las. Eu não defendo o modelo de médico ´João Semana’ que é uma boa pessoa, já viu muito, mas não estuda. Eu defendo o primado da ciência, as pessoas devem estudar e formar-se teoricamente, não há prática sem teoria, mas, por outro lado, a proximidade com o doente e com a sua família, perceber quem são e de onde vêm é fundamental.

E os doentes hoje são mais fáceis? É mais fácil compreendê-los?

São mais fáceis e é mais simples atualmente explicar aos doentes o que é uma doença genética, como se transmite de pais para filhos, os riscos que existem. Antes os doentes eram muito passivos, estavam sempre à espera de um certo paternalismo, não questionavam muito o que o médico dizia, muitas vezes perguntavam o que é que nós fazíamos se estivéssemos no lugar deles. Hoje as pessoas têm mais informação e são capazes de entender melhor. No entanto, o sistema nervoso é a área na qual as pessoas são mais ignorantes, mesmo pessoas com formação superior não sabem como funciona o cérebro. Eu acho que é um problema do sistema de ensino. Por exemplo, o facto de as pessoas atribuírem ao coração todas as faculdades do sistema nervoso como o amor, as emoções, a ternura, a sensibilidade. É tudo cerebral, nada é coração. Há quem nunca tenham pensado nisto. É muito intrigante…

Penso que hoje as pessoas têm mais informação, compreendem-nos melhor, têm uma atitude mais ativa e menos passiva, e isso é bom, claro. Há, no entanto, o outro lado da moeda, nos dias hoje começam a aflorar alguns sinais de radicalismo mal informado, modas que podem pôr em causa coisas que custaram muito a construir. Designadamente na área materno-infantil, relacionadas com a gravidez e com o parto, há sinais de muita “modernidade”, mas que podem representar uma regressão civilizacional e isso é perigoso. Há muitas “fake news” e leviandades. Quer dizer, nós partimos de uma taxa de mortalidade brutal. Muitos partos eram feitos em casa, sem assistência, morriam muitos bebés e, às vezes, as mães. Nós vimos daí, foi há 50 anos, para uma taxa de mortalidade materno-infantil que é das menores do mundo. Claro que se deve aperfeiçoar e humanizar, com evidência científica, mas não regredir.

"Se não entendermos quem são as pessoas não conseguimos ajudá-las. Eu não defendo o modelo de médico ´João Semana’ que é uma boa pessoa, já viu muito, mas não estuda. Eu defendo o primado da ciência, as pessoas devem estudar e formar-se teoricamente, não há prática sem teórica, mas, por outro lado, a proximidade com o doente e com a sua família, perceber quem são e de onde vêm é fundamental."

 

 

 

 

 

 

NeuroPorto.75, a 25 de julho de 2015: encontro de gerações na comemoração dos 75 anos da Neurologia e das Neurociências no Norte de Portugal.

O que é mais fascinante no cérebro e na medicina?  

O mais interessante na medicina é, enquanto médicos, podermos contribuir para a melhoria da vida das outras pessoas, muitas vezes obtendo grandes ganhos sem grandes investimentos. Devemos ter a pretensão de fazer o máximo possível pelos doentes e pelos seus descendentes. Na Neurologia o que me fascina é o facto de fazermos diagnósticos – de dizermos onde está a lesão – apenas a observar doente, a ouvi-lo, sem exames complementares. Em Neurologia somos capazes de dizer exatamente onde está a lesão sem ver o cérebro, sem percutirmos, sem palpar ou auscultar. Tudo isso, o que se aplica à medicina no sistema nervoso é inacessível. Temos de deduzir onde está a lesão por défice ou perturbação de funções. A chamada semiologia neurológica era a base do diagnóstico antigamente, o que fazia com que a Neurologia tivesse um certo charme de detetive… através de deduções, juntando peças chegávamos à conclusão. Hoje, a abordagem inicial não é muito diferente, mas depois temos exames extraordinários que confirmam as nossas hipóteses e que permitem diagnósticos precisos e seguros.   

"O mais interessante na medicina é, enquanto médicos, podermos contribuir para a melhoria da vida das outras pessoas, muitas vezes obtendo grandes ganhos sem grandes investimentos. Devemos ter a pretensão de fazer o máximo possível pelos doentes e pelos seus descendentes. Na Neurologia o que me fascina é o facto de fazermos diagnósticos – de dizermos onde está a lesão – apenas a observar doente, a ouvi-lo, sem exames complementares."

Num mundo em que tudo acontece tão rápido, onde as exigências chegam de todos os lados, quais os grandes desafios ao ensinar novos médicos?

Na minha especialidade, o mais importante é ensinar os estudantes a saber “separar o trigo do joio”. Têm de ser capazes de perceber o que é importante e relevante na análise que fazem, o que devem agarrar para chegar ao diagnóstico, eliminando tudo o que é ruído. Isto aplica-se também aos exames complementares que muitas vezes são pedidos. Os estudantes têm de saber o que faz sentido pedir. Devem por isso saber questionar-se: “porque vou pedir este exame”, “o que vou ganhar com ele”, “vai contribuir para esclarecer o doente, ou para o tratar”. Ensiná-los a responder a estas questões é, do meu ponto de vista, essencial. E depois, outra coisa fundamental é ensinar a ter cuidado com as pessoas, cuidado no modo como tratam as pessoas. Curiosamente este é um grande desafio, porque os médicos novos e os estudantes de Medicina, tendem a ser citadinos, de classes socioeconómicas e culturais elevadas, onde não há uma grande mistura de pessoas. Isto faz com que não estejam habituados a determinadas realidades que podem ter impacto direto no doente e na relação que se estabelece. Coisas essas que para um citadino urbano são muito normais e podem chocar alguns doentes.   

Portanto alerto sempre para isto, que parece básico, mas de que alguns não se apercebem e do impacto que isso pode ter. Os internos sabem que têm de proteger os dados de um exame genético e respeitam o sigilo, por exemplo, mas depois escrevem na nota de alta ‘pílula desde os 16 anos’. Para eles é normal, mas a nota de alta pode ser lida por toda a gente lá em casa e esta informação que parece tão trivial pode causar constrangimentos. Outro alerta é para o abuso do léxico médico, da linguagem técnica, e ainda, por último, mas não menos importante, o respeito pelo passado, pelas pessoas e instituições que nos antecederam. 

 

Entrevista e texto de Bárbara do Carmo Silva
Fotografia do arquivo pessoal do Prof. José Barros