Mariana Coelho - o Doutoramento como passaporte para o mundo industrial

Quando terminou o mestrado integrado em Bioengenharia na FEUP, um curso que é partilhado com o ICBAS, Mariana Coelho tinha “o céu como limite” e a Alemanha no horizonte. Escolheu a investigação do cancro como tema de doutoramento, enquanto preparava o seu passaporte para o futuro na indústria das Big Pharma. Com um pé na investigação mas sempre com um olhar no mundo empresarial, trilhou a próprio pulso um constante meio caminho entre os dois mundos, que irá ver finalmente concretizado em breve, com uma oportunidade profissional na indústria farmacêutica alemã. Esta é a história de uma bioengenheira “open minded”, para quem o curso serviu de alavanca para um mundo de oportunidades.

Vamos começar pelo início. O que é que a levou a escolher o Mestrado Integrado em Bioengenharia, em 2014?

É sempre bom voltar a essa altura, a essas memórias. Eu sou natural de Oliveira de Azeméis, onde nasci, cresci e estudei. No final do ensino secundário, com os exames nacionais concluídos e com boas notas, fui a típica aluna que teve que gerir a questão interna de ter que escolher entre medicina ou outro curso. Na altura a minha grande dúvida até era entre escolher Medicina no ICBAS ou Bioengenharia, na FEUP e no ICBAS. Como não sentia muito o chamamento para lidar diretamente com pacientes, acabei por optar pela Bioengenharia, pela diversidade do curso, por ser uma engenharia com a componente da medicina, e por me permitir mais tarde especializar-me numa área. Acabei por optar por biotecnologia molecular.

Hoje, à distância de todo este tempo, sente que foi a escolha certa?

Estou contente com a minha escolha. Era um curso recente e relativamente bem estabelecido. A rede de docentes fez com que fosse um curso muito interessante nas três áreas – Engenharia Biomédica, Engenharia Biológica e Biotecnologia Molecular. Talvez não seja um curso tão bem conectado com o mundo empresarial da engenharia, como o são os outros cursos da FEUP, e isso é se calhar um dos pontos negativos, mas no geral estou muito satisfeita com o curso que escolhi.

Escolheria de novo o curso de Bioengenharia?

Essa é sempre uma pergunta complicada. Acho que se escolhesse outro curso, continuava sem ser medicina. Escolheria algo mais prático, como gestão ou economia, um curso que durasse menos tempo e que me permitisse mais rapidamente perceber aquilo que se pode fazer com a formação. Na minha opinião, um dos problemas dos mestrados integrados é que os 5 anos são um tempo muito extenso. No caso do curso de Bioengenharia, que não tem muita ligação à indústria, acaba por revelar-se um hiato de tempo muito grande e acabamos por perder a perspetiva do que fazer no fim do curso. A maior parte de nós acaba por fazer escolhas mais direcionadas para a área da investigação académica, que é aquilo que vemos a maior parte dos professores a fazer.

Percebe-se pelo seu discurso uma vocação para as áreas da gestão e da economia. Essa característica tem pautado também o seu percurso profissional?

O curso de Bioengenharia, tendo em conta as pessoas que o fundaram, e que continuam a lecionar, conduz muito os alunos para a investigação académica. Eu percebi muito cedo que talvez não quisesse fazer investigação para o resto da vida. Todos sabemos dos problemas que há na investigação em Portugal, caracterizada pelos baixos salários, as más condições para os investigadores, os contratos muito curtos, os recursos limitados. Do meu ponto de vista, isso sempre foi um ponto fraco, e uma das razões que me levaram a procurar um doutoramento no estrangeiro, sempre com a ideia de, em algum ponto da minha carreira, dar “o salto” para a indústria. Nunca me vi com perfil para a investigação.

A falta de uma ligação direta do curso à indústria alterou de alguma forma os seus objetivos profissionais?

Um dos meus objetivos com o doutoramento foi precisamente o de melhorar o meu CV para conseguir ter um perfil que me permitisse saltar para a indústria. A verdade é que o curso de Bioengenharia é altamente reconhecido em Portugal, os graduados são muito talentosos, têm muitas competências, mas quando nos tentamos candidatar a empregos na indústria no estrangeiro, percebemos que não temos o perfil que é exigido. Nos países da Europa onde existem cursos de Bioengenharia os estudantes têm a oportunidade de fazer estágios em ambiente industrial, o que é muito importante quando se pretende ingressar no mercado de trabalho. E isso é algo que está claramente a faltar ao nosso curso de Bioengenharia.

Desse ponto de vista, o facto de o Mestrado Integrado em Bioengenharia ser um curso partilhado pela FEUP e pelo ICBAS revelou-se uma dicotomia ou uma sinergia?

Sem dúvida uma sinergia. É totalmente verdade que a FEUP tem uma grande preocupação em fazer uma associação entre o ambiente académico e o ambiente empresarial, mas isso é mais verdade para os mestrados de especialização em engenharia biomédica e engenharia biológica. Como optei pelo ramo de biotecnologia molecular, a partir do 3º ano acabei por perder a ligação à FEUP, por ter passado a estudar em exclusivo no ICBAS, mas por outro lado também hão há muitas empresas em Portugal do ramo da biotecnologia molecular a que as faculdades se possam de facto associar. Em todo o caso, há uma completa sinergia entre as duas instituições. Ainda hoje sinto que é bom ter tido a experiência das duas instituições, porque são dois tipos de ensino completamente diferentes. Por um lado, tenho características de engenheira, fruto de um tipo de ensino mais prático, virado para o pensamento crítico e racional, da matemática e da física, e por outro lado características biomédicas, que adquiri no ICBAS, caracterizado por um ensino mais clínico e médico, ligado à biologia e à fisiologia. E definitivamente esta perspetiva dual é única dos estudantes de bioengenharia. A FEUP e o ICBAS primam pela sua diferença, e o conjunto dos dois é uma mistura única, que se revela uma vantagem.

Concorda com a afirmação de que para um bioengenheiro ter verdadeiro sucesso profissional tem que sair do país?

Essa é uma pergunta difícil. Acho que isso depende de caso para caso, e também muito da especialização que se escolhe. Por exemplo, no caso da especialização em engenharia biomédica não é tanto assim, e no nosso país poderá fazer-se uma carreira interessante nessa área porque há algumas empresas e startups em Portugal, algumas delas criadas até por alumni de bioengenharia, capazes de absorver esses graduados. Mas na área da biotecnologia molecular, o cenário já é um bocadinho diferente. Se se quiser fazer uma carreira na academia, sim, mas caso se pretenda ir para a indústria, o mercado não funciona de todo. Acho que uma pessoa que estude bioengenharia e que queira ingressar no mundo corporativo das Big Pharma tem que sair do país, o que é triste. Essa é uma mágoa que eu sempre terei.

Como é que surgiu a oportunidade de sair de Portugal, e de desenvolver o seu doutoramento no German Cancer Research Centre? Antes disso teve alguma experiência profissional no país?

A primeira experiência de investigação que tive foi durante o 3º ano de faculdade, no i3s, com o Prof. Pedro Granja. Mais tarde fiz a tese de mestrado com a Dra. Cristina Barrias, também no i3s. Foram duas experiências que me permitiram conhecer o funcionamento da investigação em Portugal e perceber se me encaixava nesse ambiente no futuro. No 4º ano surgiu a oportunidade de fazer Erasmus. No curso de Bioengenharia não existem vagas protocoladas para Erasmus, e os estudantes que pretendessem ter essa experiência eram motivados a fazer os seus contactos nesse sentido. Foi assim que encontrei o German Cancer Research Centre, em Heidelberg, que me aceitou. Foi o meu primeiro contacto com a investigação no estrangeiro num grupo que estudava células estaminais em leucemia mieloide aguda. Não me pergunte porquê, mas sempre tive ambição de vir trabalhar para a Alemanha.

Fotografia: dkfz.de

Tanta, que ainda hoje se mantém. Como é que surgiu a oportunidade de regressar à Alemanha?

Realizei Erasmus durante 6 meses, e fiquei com vontade de voltar, porque o instituto tinha um programa doutoral de alta reputação, que me atraiu bastante. Por isso, quando terminei o curso, candidatei-me ao programa e fui admitida, beneficiando, claro, do facto de ter feito parte da tese de mestrado nesse instituto. Comecei o meu doutoramento em 2019, na área da leucemia linfocítica crónica, de certa forma ainda ligada à imunologia, à biologia molecular e celular. Durante a minha experiência de Erasmus gostei muito do grupo com que trabalhei, gostei especialmente da minha supervisora, e acima de tudo gostei de ter trabalhado num instituto de topo na Europa, talvez o melhor da Alemanha em investigação de cancro, que tem muitos recursos financeiros para fazer investigação, o que nesse aspeto não se compara com Portugal. Aqui vive-se um bom ambiente, que não é demasiado competitivo, e que permite uma boa interação entre os grupos, além de ser possível que todas as pessoas tenham acesso à investigação sem que estejam condicionadas pelos recursos financeiros disponíveis. Atualmente estou no 4º ano do doutoramento. Entreguei recentemente a tese.

Em que área de estudo desenvolve a sua atividade científica?

O meu grupo de trabalho é um grupo médio, de cerca de 15 pessoas, com muita interatividade entre todas. A nossa área de estudo é o microambiente dentro da leucemia linfocítica crónica, sendo cada um de nós responsável por um tipo celular, o que é muito vantajoso, porque cada um acaba por se tornar um expert num tipo celular. A minha área é a das células mieloides e dendríticas. Mas eu entrei no doutoramento já com a intenção de mais tarde poder “saltar” para a indústria.

Porquê o doutoramento como passaporte de entrada no mundo industrial?

Quando terminei o curso candidatei-me a muitas vagas na indústria, e fui rejeitada em todas elas. Nessa altura percebi que o meu CV não estava preparado para me permitir entrar na indústria, e esse foi o meu objetivo com o doutoramento, durante o qual tive duas experiências em ambiente industrial, que foram muito importantes para o meu percurso. Tive muita sorte em a minha supervisora ter sido aberta a esta minha intenção e me permitir ter estas experiências, o que no mundo académico nem sempre é fácil. Da primeira vez estive 3 meses a desenvolver um projeto de R&D na farmacêutica Bayer, em Berlim, e mais tarde, estagiei na Merck, uma empresa que tem também área de in-house consulting, que é algo que me permite relacionar um pouco a gestão e a economia com a bioengenharia. Estas duas experiências permitiram-me melhorar as minhas competências e ter um CV mais apetecível para as Big Pharma. Exemplo disso é que vou começar uma posição nesta empresa [Merck] em setembro.

O facto de ter desenvolvido o tema de doutoramento em torno da investigação para o cancro determina de alguma forma o sentido do seu futuro profissional?

Os conhecimentos que adquirimos são fundamentais para qualquer área. É muito mais fácil para alguém que tenha estudado biologia adaptar-se mais tarde à área da economia ou financeira, do que o contrário. E, nesse aspeto, o nosso background de bioengenharia é único. No caso de uma Big Pharma, um bioengenheiro acaba por ser um ponto central numa equipa multidisciplinar. Eu própria estudei bioengenharia, e agora estou a fazer um doutoramento no estudo da leucemia. Portanto, o conhecimento é muito útil, mas em termos profissionais o céu é o limite.

Alguma vez Portugal vai ter a capacidade de reabsorver um percurso profissional traçado no estrangeiro, como o da Mariana?

Espero que sim. A ideia é sempre voltar ao nosso país, o que pode ser mais ou menos realista. A empresa onde me encontro atualmente [Merck] tem cerca de 60 mil pessoas na Alemanha. A empresa também existe em Portugal, embora com uma dimensão diferente. Se um dia eu quiser ingressar na Merck Portugal, terei que fazer o reajuste das expectativas. Penso que Portugal poderá sempre absorver-me, mas será necessária uma troca de condições e de qualidade de vida da minha parte.

 

Entrevista e texto de Cristiana Maia
Fotografia DR