Paula Santos – A medicina veterinária para além da clínica e dos pequenos animais

Ser veterinária clínica não era uma opção, afinal lidar com pessoas foi sempre um desafio, às vezes uma ‘grande chatice’. Hoje é veterinária na Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), exerce funções nos Postos de Controlo Fronteiriços – Porto de Leixões e Aeroporto Francisco Sá Carneiro – e na área do Controlo dos Produtos da pesca. Um trabalho cheio de surpresas, onde o convívio, às vezes confronto, com pessoas faz parte do dia-a-dia.
Paula Santos conta-nos como é trabalhar na lota e quais os principais desafios dos inspetores sanitários, numa conversa que começou no presente e rumou ao passado, aos dias no ICBAS antigo, numa grande família.

Como funciona o controlo e a segurança alimentar, neste caso, na Lota de Matosinhos?

Temos dois objetivos quando vimos cá fazer controlos: por um lado, controlo de instalações e forma de trabalhar dentro do espaço da lota que está ao abrigo do Número de Controlo Veterinário (NCV) da lota propriamente dita; por outro, garantir que tudo o que se passa no recinto da Docapesca, cumpre e funciona dentro de determinada forma. Tudo o que se passa neste espaço influencia diretamente o trabalho dos vários estabelecimentos que aqui existem, sendo que a sua maioria, neste momento já tem NCV. Por exemplo, o chão não está limpo, as pessoas que entram, os carros que circulam, os camiões que passam ou onde param… Tudo o que se passa aqui dentro vai, necessariamente, ter implicações no produto que aqui é vendido.

Depois, a um outro nível, temos as embarcações de pesca, aqui falamos de produção primária, que fazem a descarga dos produtos da pesca nos portos da Docapesca e que também são controladas.

 

Portanto, quando falamos em controlo dos produtos da pesca falamos de controlos desde os navios de produção primária e pisciculturas, até aos estabelecimentos em terra e no mar que laboram Produtos da pesca.

Em Portugal, a venda de produtos da pesca capturados e descarregados nos nossos portos é feita obrigatoriamente em lota, ou seja, a primeira venda de pescado tem, por lei, que ocorrer numa lota. É a DocaPesca, SA, empresa público/privada que detém o monopólio.

 

Depois da primeira venda em lota os produtos da pesca seguem o seu caminho, seja para mercados de segunda venda, para estabelecimentos (de recondicionamento, conserveiras, centros e depuração, congelação, etc), restaurantes, peixarias e outros mercados de venda a retalho. Desde o momento da captura, até chegar ao consumidor final, os produtos da pesca passam por muitos locais, e todos carecem de controlo, alguns realizados pela DGAV, outros pelos municípios. Portanto, a lota é o estabelecimento onde acontece a transferência dos produtos da pesca, das caixas das embarcações para as da Docapesca, adiciona-se gelo (quando aplicável), ocorre venda por leilão, ou por contrato e é entregue ao comprador. 

Qual a maior dificuldade quando se está a fazer este tipo de trabalho, tão rigoroso e fundamental, num espaço como este com tantos entrepostos e com tantas sensibilidades?

A maior dificuldade é, exatamente, gerir pessoas e sensibilidades, porque temos por um lado a gestão da lota e dos estabelecimentos e, por outro a gestão das embarcações. É complexo gerir as diferentes necessidades, especificidades e obrigações legais, sendo que o cumprimento das coisas de uns dependem, em muitos casos, da forma direta do cumprimento por parte de outros. Mas, com o tempo as pessoas vão-nos conhecendo e percebem que estamos aqui a fazer o nosso trabalho, vão-nos respeitando e as coisas evoluem de forma mais fluida e simples.

A DGAV não dá formação, dá diretrizes sobre como deve funcionar o processo desde a apanha do peixe, à venda e distribuição…

São os estabelecimentos que têm toda a responsabilidade sobre o que se passa dentro do seu espaço, mesmo que as operações estejam a ser executadas por pessoas que não sejam funcionários do estabelecimento propriamente dito. Por exemplo, o peixe é descarregado pelas tripulações, e são elementos afetos aos navios que executam todas as tarefas desde o momento da descarga até ao momento da pesagem. Estas pessoas estão a trabalhar num espaço que está ao abrigo dum NCV, não são funcionários da empresa detentora deste NCV e muitas vezes não cumprem requisitos básicos de fardamento, por exemplo. Estas não conformidades são refletidas no controlo desse estabelecimento e, no caso do setor das pescas, a tradição, e o “sempre foi assim”, faz com que as coisas corram de forma mais lenta. No entanto, com calma, perseverança, paciência e foco chegamos a soluções e os resultados começam a aparecer.

Reconheço que no setor das pescas, há sempre muita resistência à mudança, sempre que se muda alguma coisa, há uma revolução e isso é um enorme desafio.

Para além desse grande desafio que é lidar com as pessoas e com sensibilidade diferentes, que é fazer-se respeitar, que outros desafios acarreta um trabalho como este?

Mudar a ideia de que o peixe é sempre bom, é saudável, é sempre fresco, que não acarreta riscos, ou perigos. Esta premissa nem sempre é verdade, e é difícil explicar que é preciso mudar, fazer diferente, para garantir a qualidade e, em última instância, o bem-estar e saúde pública dos consumidores.

Existem muitas ideias preconcebidas que tornam a mudança muito difícil. Por exemplo, há a ideia de que o peixe fresco é melhor que o peixe congelado, isso nem sempre é verdade. No caso do sushi, sendo o peixe consumido cru, consumi-lo sem ter a garantia de que este produto sofreu um tratamento térmico prévio, no caso a congelação, pode acarretar riscos parasitários muito importantes.

No setor do parasitismo temos ainda que ter em conta que as embarcações que evisceram pescado a bordo, atiram borda fora as vísceras e, desta forma, existe a perpetuação do ciclo parasitário e até um aumento desse risco. Por outro lado, temos algumas espécies: sardinha, cavala, sarda…assim espécies azuis que se não estiverem frescas podem ser problemáticas por causa dos níveis de histamina. Pessoas com atopia podem ter reações graves se ingerirem pescado com níveis de histamina mais altos e não fazem associação, na maioria das vezes ao pescado que comeram, porque a perceção de que o pescado pode causar-nos problemas ainda não é uma realidade, mudar este pensamento é outro grande desafio.

Que este trabalho é desafiante e repleto de ação, já o sabemos. Mas como é exatamente o dia-a-dia na DGAV?

Neste momento estou quase sempre, no Porto de Leixões e no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, onde fazemos o controlo de tudo o que entra na União Europeia, desde animais vivos, que veem de países terceiros, até a produtos destinados ao consumo humano de origem animal, ou tudo o que é para consumo animal, pode ser ração para cão, ou milho para frangos.

Para além disso, mantenho em paralelo as funções de controlo no setor das pescas, desde os navios (produção primária), às pisciculturas e às lotas, neste caso Matosinhos, bem como a outros estabelecimentos. Também fazemos controlo dos navios-fábrica de bandeira portuguesa em terra, nem sempre e Portugal. 

No que se refere ao trabalho no controlo de fronteiras sei, mais ou menos o que me espera, no que se refere ao trabalho no setor dos produtos da pesca, cada dia é uma aventura e a rotina não existe no dicionário.

Recuando um pouco, porque veterinária e porque o ICBAS? E como é que uma veterinária decide seguir esta área da inspeção alimentar?  

Eu só escolhi veterinária e o ICBAS foi a minha primeira escolha! Entrei em 1995, era um curso novo (iniciou-se em 1994), e tendo em conta as informações que tinha, pareceu-me o mais acertado. Esta escola já era uma referência no ensino da medicina e de ciências do meio aquático, já tinha uma história tão sólida e importante, não ia criar um curso se não tivesse bem pensado e estruturado. Este foi o meu pensamento, para além de que o ICBAS ser perto do local onde morava e como eu era trabalhadora estudante, a localização era fundamental.

Depois veterinária foi a única opção, eu gostava de ciências, gosto de animais de uma forma geral, não gosto de lidar com pessoas, ou melhor, não tenho muita paciência, portanto, Medicina não dava, veterinária era o caminho e ponto final.

O que encontrou nesse ICBAS de 1995?

Uma família! O que tenho mais saudades é do antigo edifício onde nos ouvíamos em todo o lado, era tão bom! Principalmente porque falo alto. Eramos poucos alunos, uma turma pequena, onde toda a gente se conhecia e passávamos muito tempo juntos. Para além disso no ICBAS encontrei professores muito próximos, assim como os funcionários, portanto o ambiente era bom, acolhedor, de grande proximidade. Só tenho boas recordações!

Veterinária e o ICBAS era a escolha única. Como é que chegamos à inspeção?

Sempre gostei de clínica de animais pequenos, mas, lá está, tinha de lidar com as pessoas, e isso era difícil. Por exemplo, tinha pena de alguns donos que não podiam pagar os tratamentos e eu dizia que se corresse mal eu pagava, se corresse bem eles encontrariam uma forma de pagar, não podíamos era deixar o animal sem tratamento. Ora claro que esta abordagem não era exequível. Portanto clínica não era uma boa opção, eu ia ficar desempregada rapidamente.

A par disto eu gostava da área da saúde pública, gosto do mar, não gosto da inspeção de carnes, e, portanto, o pescado, sempre fez sentido para mim. Comecei na DGAV logo que acabei o curso, como tinha feito aqui o estágio, ligaram-me porque iam sair 3 colegas e eu fiquei. Foram anos muito intensos e de muito trabalho árduo. Éramos dez pessoas nesta lota e cobríamos a totalidade do horário, das 07h00 às 02h00 da manhã. 

Há uma dificuldade efetiva em atrair os estudantes para esta área. O que lhes diria para os incentivar, para os convencer?

O que eu recomendaria a quem começa agora, é que viesse experimentar para saber se realmente gosta. Faz falta aos estudantes experienciarem e acompanharem in loco este tipo de trabalho, com tempo, sem pressas. É importante que percebam se têm perfil para fazer este trabalho, a vários níveis, nomeadamente porque existe uma linha muito ténue entre a boa relação que se cria com as pessoas nesta área e o trabalho propriamente dito. É muito fácil confundir as coisas e isso pode trazer problemas. Depois a saúde pública é fundamental, portanto, se fizermos este trabalho com gosto, responsabilidade e bom senso, é muito compensador.

 

Entrevista e texto de Bárbara do Carmo Silva
T
ranscrição de Mariana Pizarro
Fotografia  de Sérgio Vilela e Paula Santos